Stefano Scaramuzzino e as "vozes que merecem ser ouvidas"

Entrevista ao Diretor do Istituto Italiano di Cultura, Stefano Scaramuzzino

Em 2022, a parceria entre o TODOS e o Instituto Italiano de Cultura de Lisboa deu aso à criação fotográfica “Ulisses: desembarque em Santa Clara”. Como tem sido o desembarque do Stefano Scaramuzzino em Lisboa, como diretor do Instituto?


Antes de 2021, ano em que assumi o cargo, já tinha visitado Lisboa já sentira a sua singularidade: ficaram-me na memória a luz refletida nas calçadas, a atmosfera de uma capital virada para o infinito, as arquiteturas Art Nouveau que não sofreram os danos da Segunda Guerra Mundial.

Como diretor, senti desde o início a hospitalidade dos “nativos” e a sensação de estar imerso num cenário familiar, em casa, num jogo de memórias e expetativas recíprocas: os portugueses veem a Itália como o país presente nas recordações de uma viagem, ou como destino futuro, com imagens do Belpaese que descobriram em filmes, livros ou relatos de amigos; do lado italiano, Portugal é visto como uma terra que evoca um passado ideal (irreal?) de harmonia bucólica da paisagem mediterrânica, de humildade e autenticidade das pessoas, de sabores genuínos de outrora.


Essa correspondência de visões significou tanto uma simplicidade na abordagem às instituições, como uma abundância de propostas de colaboração em todos os setores da nossa ação. O tempo levou consigo uma visão simplista, dando lugar a uma que tivesse em conta o outro lado da moeda: aquela “bulimia” de propostas era o reflexo de um desequilíbrio entre um centro com uma sobreabundância de festivais, mostras, eventos em constante concorrência por uma fatia de visibilidade, e uma “terra incógnita” praticamente ausente das narrativas.

Como diretor, o desafio foi, portanto, limpar os olhares de estereótipos, provavelmente influenciados por visões neocoloniais e classistas: a missão do Instituto seria mostrar a cultura contemporânea italiana tal como ela é, sem intenções propagandísticas ao serviço de outros interesses, fundamentando a sua autoridade na autonomia. E faria isso colaborando com realidades e instituições dispostas a um diálogo baseado no aprofundamento recíproco, saindo das respetivas “zonas de conforto”.


Que cidade é esta? Como descreveria Lisboa a quem nunca cá tenha estado?

Tal como as grandes capitais do mundo, Lisboa é uma rede complexa de realidades, e, se houver recursos adequados, é necessário ir além da "Lisboa dos tuk-tuks"; para poder dizer que a viu realmente.


A menos que se viva com palas nos olhos, após três anos de vivência lisboeta a principal qualidade da cidade deixa de ser a capacidade de deslumbrar de que falava há pouco e começa a ser a proximidade dos opostos: como o preto e o branco da calçada, ou como na imagem de uma metrópole à beira do abismo, o "zest" desta cidade são os seus contrastes. O hotel de cinco estrelas que se ergue ao lado do edifício degradado e abandonado. A consciência de um mal-estar comum (desde as inundações após chuvas intensas até aos protestos pelo direito à habitação), seguida por um debate público e no Parlamento para lhe fazer frente, graças aos poucos “graus de separação” entre o cidadão e a instituição. A calma e moderação nas reivindicações sociais, sem deixar de lado uma satírica mordaz ao poder, que encontra espaço nas paredes da cidade, em formas impensáveis noutros lugares.

É possível, aliás, é mais fácil (a curto prazo) trabalhar e viver bem ignorando essas dicotomias. Mas dado que a eficácia de uma missão cultural no estrangeiro se mede em termos de impacto local, em vez da evanescência e impressões ou de títulos de participações "excelentes" em eventos fechados, também os institutos culturais estrangeiros devem lidar com tudo isso para dar sentido à própria presença.


O que é para si o Festival TODOS e qual o seu papel na cidade de Lisboa?

Tive a sorte de viver o TODOS, em primeiro lugar, como espectador: chegando à cidade em agosto de 2021, descobri o festival no mês seguinte, como pretexto para explorar uma nova zona da cidade, atraído por concertos ao ar livre, visitas guiadas e tipos de cozinha que eram novos para mim. Desde então, ficou claro que o objetivo dos programadores era propor iniciativas que colocassem em comunicação pessoas de lugares distantes da mesma cidade.

Entre os contrastes mencionados, o TODOS pareceu-me a válvula de conexão, a membrana que não nivela as diferenças, mas que realiza uma osmose, oferecendo ocasiões para confrontar-se com algo nunca experimentado, proporcionando oportunidades para reprogramar o próprio cérebro e introduzir o germe da mudança na visão pessoal do mundo. Que, no fundo, é o que distingue a atividade cultural.

Se o metro é o motor do progresso social que desativa tensões entre realidades que não se entendem e não comunicam, um festival que conquista a confiança dos territórios ao propor uma programação gratuita, elaborada segundo as suas prioridades, é a sua continuação natural. São dois tipos de investimento em capítulos diferentes do orçamento da cidade, mas com o mesmo objetivo.

Essa convicção reforçou-se nas edições seguintes, em que o Instituto Italiano de Cultura assumiu um papel ativo, juntamente com a ideia de que realidades como o TODOS deveriam existir em todas as cidades onde emergem um centro e uma periferia.



De que forma relaciona a missão do TODOS com a missão cultural do Instituto Italiano de Cultura?


Tendo em conta o que entendo por impacto da ação promocional do Instituto, confirmo que a correspondência de visões torna o TODOS um dos nossos parceiros privilegiados e constantes.

O fato de a definição do projeto não ser um momento isolado, mas sim um processo que começa logo após o término da edição anterior, explica por que é possível colaborar de forma eficaz em realidades que, de outra forma, seriam dificilmente permeáveis à ação de um gabinete cultural de uma embaixada estrangeira.

Colaboramos com parceiros em todo o país, com direções acessíveis e equipas extremamente competentes, mas poucas realidades apresentam a capacidade de adaptação do TODOS, desenvolvida ao longo de anos em zonas de intervenção sempre diferentes, acompanhada pela convicção comum da missão social da cultura.



Como espectador “privilegiado” e parceiro próximo do TODOS, que momentos leva na memória destes já vários anos de colaboração?


Um momento particularmente marcante foi quando nos encontramos com a artista italiana convidada pelo TODOS, no meu primeiro ano de colaboração: Valentina Vannicola. Numa rua isolada, em um não lugar ao longo do trajeto do projeto "Lisboa Crossing" dos artistas franceses Sébastien Renauld e Laurent Boijeot, participamos na performance de migração de um ponto a outro da cidade, que ocorreu ao longo de 10 dias, ao ritmo de 1 km por dia. Após os primeiros momentos de apresentação e troca de experiências entre artistas, ajudamos a transportar camas, cadeiras e móveis da instalação habitacional, atraindo os olhares curiosos dos moradores. Foi iluminador sair dos nossos papéis habituais, sentindo-nos parte de um projeto maior ao qual demos a nossa pequena contribuição.


Outro momento em que o espírito do TODOS se revelou para mim foi no concerto da Orquestra TODOS & Selma Uamusse no Largo das Galinheiras. Existia o risco de que o concerto fosse sentido como um corpo estranho e de que o seu público fosse visto como pessoas à procura de uma experiência exótica e desconectada da vida quotidiana do bairro. Mas os programadores não deixaram nada ao acaso, construindo o evento de forma a minimizar qualquer risco, demonstrando, aliás, o que pode ser alcançado com empenho e capacidade de escuta. E quando ocorreu um imprevisto, com uma pessoa tentando subir ao palco e tomar o microfone, a equipa interveio com decisão, mas com tato, deixando que a tensão do momento se dissipasse. Um dos músicos até fez uma piada, dizendo que o público estava tão envolvido ao ponto de querer juntar-se a eles no palco.


Que futuro vê para esta relação institucional?

Nestas três edições, o TODOS representou a moldura dentro da qual organizámos eventos de fotografia, street art, música e circo contemporâneo, trazendo a Lisboa artistas que deixaram uma marca no tecido social e urbano. Gostaria, portanto, de continuar a convidar artistas italianos nas áreas da dança, teatro, banda desenhada e cinema, capazes de estabelecer uma conexão com as zonas em que o TODOS se concentrará no futuro próximo.

Como os mandatos de nós, funcionários, têm uma duração de quatro anos, serão os meus sucessores a cultivar essa relação; cada direção tem, naturalmente, as suas estratégias e visões, mas quando há precedentes de sucesso e ótimas sinergias, como neste caso, é mais provável que a colaboração continue no caminho já traçado.

Um projeto que também ponha em comunicação diferentes parceiros do Instituto, por exemplo, com residências de artistas que intervenham em eventos com públicos e localizações diferentes, pode ser uma oportunidade de maximizar a visibilidade dos projetos apoiados, racionalizando os recursos.


O mote para esta edição do TODOS em Arroios é “Entre Iguais”. Como olha para esta ideia num mundo em que ao mesmo tempo também somos cada vez mais diferentes?


Por um lado, quanto mais investigo o passado, mais questiono este paradigma das inéditas possibilidades de confronto com o diferente. Parece-me que as sociedades humanas, em todas as épocas e em todos os lugares, sempre enfrentaram a questão de como garantir a ordem à luz da convivência no território de pessoas com origens, religiões e características somáticas diferentes, senão mesmo com sistemas jurídicos diferentes. O que vejo oscilar ao longo da história é, antes, a capacidade de convivência em face dessas diferenças. E neste momento, na realidade europeia que nos é mais próxima, mas também no mundo em geral, não vejo uma diferença crescente, mas sim uma tendência para adotar paradigmas estatísticos de normalidade-anormalidade para expressar juízos de mérito no acesso a bens, serviços e direitos. Portanto, por um lado, vejo uma diferenciação menos acentuada do que a que é referida no debate comum.

Por outro lado, tenho na mente a imagem do acampamento no bairro de Arroios. Negar que as diferenças de facto existem e que são consequência do lugar onde nascemos e da disponibilidade de recursos (assunto tabu do qual fomos habituados a não falar) não é ofensivo? Não gostaria de cair na categoria de quem finge ser difference-blind: a geração dos meus avós aprendeu na escola a temer o diferente; a dos meus pais a defini-lo e reconhecê-lo com pretensões de objetividade; a nossa a fingir que a diferença não existe. Todos esses métodos falharam e foram desconstruídos graças à cultura, ou seja, ao conjunto de vozes que surgem da atividade criativa do intelecto humano, destinada a expressar e dar dimensão externa ao seu mundo interior e que, precisamente por essa espontaneidade, introduz mudanças quando a disparidade entre a realidade e a sua narrativa se torna demasiado grande.

Generalizando a questão, perguntam-me qual é o espaço que vejo para a cultura numa sociedade em que são as leis do mercado a determinar não só a disponibilidade de bens e serviços, mas também o acesso aos direitos fundamentais? Pessoalmente, vejo a promoção cultural como um dos muitos corretivos a este esquema, uma das peças que diferenciam o estado social (voltado para a igualdade substancial) do estado liberal (limitado à igualdade formal): o apoio público amplifica a visibilidade de vozes que merecem ser ouvidas, conhecidas e absorvidas pela sociedade. E é por isso que vejo a promoção cultural, ontologicamente ligada a um público junto do qual "promover a cultura", como portadora de valor enquanto for capaz de dizer algo interessante para um público que queira assistir e participar.


Como enquadra nesta edição do TODOS o espetáculo italiano de novo circo “Gelsomina Dreams”? O que é que o público pode esperar desta proposta?


Quando se tratou de apresentar uma proposta para a 16ª edição do TODOS, na freguesia de Arroios, pensámos no “Gelsomina Dreams”, criação de uma companhia de circo italiana perto de Turim. “Gelsomina Dreams” toma o nome e o tema de um filme de Fellini (La Strada), onde Gelsomina, interpretada por Giulietta Masina, é uma personagem da rua, proveniente de uma situação de grande fragilidade na Itália dos anos 1950. Uma história poética e sonhadora, com referências ao circo. Neste filme que consagrou Fellini, Gelsomina não se abandona ao desespero, mas encontra no circo e no sonho uma possibilidade de escapar, sem, no entanto, fugir à realidade. Numa cena muito tocante do filme, o Il matto (o louco) diz a Gelsomina que todos têm a sua tarefa (o seu papel) nesse grande teatro que é o mundo. Inspirada nesta ideia, ela encontra o seu desígnio na tentativa de melhorar outra personagem no filme. É provavelmente uma provocação de Fellini, que pode sugerir que os loucos são aqueles que não sonham. Num território como Arroios, com muitos contrastes sociais, existe uma certa discrepância entre aquilo que todos vemos e o que está por trás; entre a face luminosa do circo, o turismo, e os seus bastidores. Um filme como o “La Strada”, interpretado em circo contemporâneo pela companhia BlueCinque, ainda tem, portanto, muito a dizer passados 70 anos da sua estreia.

Todos os anos temos tentado propor ao TODOS algo italiano, sim, mas em que o público local e internacional se possa encontrar a si próprio. Além do mais, este espetáculo tem uma equipa multicultural, o que se relaciona com a missão primordial do TODOS e aponta um valor fundamental no qual assenta em boa parte a riqueza das metrópoles europeias.

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